domingo, 4 de julho de 2010

Capítulo II

O caminho até o restaurante pareceu mais longo que o normal. Mandy esperava que seu pai fizesse algum comentário sobre a mudança e, da mesma forma, ele esperava isso dela também. O silêncio era angustiante. Até que, depois de um suspiro de Mandy, seu pai decidiu falar.

- Você se convenceu de que talvez possa ser bom?
- Dizem que a comida de lá é boa. – ela disse, erguendo os ombros e forçando um sorriso. – É uma decisão definitiva?
- Sim. – ele respondeu, de imediato. – Quer dizer, eu preciso fazer isso.
- Eu entendo. – ela disse, como se realmente entendesse, embora não aceitasse. – Hoje minha mãe me ligou.
- É? Fazia tempo que ela não ligava, não é?
- Sim... Ela me fez falar com Andrew e me forçou a chamá-lo de papai.
- Que besteira. Você chamou?
- Não, então ela ficou nervosa e desligou sem dizer nada. Ele não é meu pai, não tem motivo para eu chamá-lo desse jeito.

Seu pai concordou e o silêncio voltou a reinar. Mandy olhou para seu pai, que, agora tinha uma expressão tranqüila em seu rosto. Ela sabia o motivo de sua tranqüilidade. Sorriu também. Ela, de fato, o amava. Era a única pessoa a quem ela completamente incapaz de mentir, e podia afirmar que ele era a única pessoa por em ela vivia.

Logo chegaram no restaurante. O manobrista levou o carro, eles entraram, sentaram-se à mesma mesa de toda quinta-feira e pediram o mesmo prato de sempre. Foi mais uma noite divertida. Eles adoravam essas noites. Voltaram mais tarde que o normal para casa e um pouco mais altos também. Toda semana prometiam um ao outro que não beberiam novamente na semana seguinte, mas traiam-se e acabavam rindo disso. Isso sim era um problema.

Mandy passou a noite em claro pensando que, no dia seguinte, seria praticamente obrigada a contar a Annie sobre sua mudança, já que seria tão breve. Tentou planejar um jeito de contar que não a machucasse, nem a ela mesma. Visto que não encontrou, deixou-se vencer pelas lágrimas que, além de perturbação, eram de embriaguez também. Agora sim ela chorava. Tudo. Tudo que havia prendido durante todo o dia.

Levantou do sofá na hora de ir para a escola e subiu para o seu quarto. Tomou banho, se arrumou como se arrumava para a aula, todos os dias. A maquiagem cobriu o sono exterior, mas ela podia enxergar tudo girando por ter passado a noite acordada. Desceu as escadas novamente e preparou o café da manhã para seu pai e foi chamá-lo. Acabou se atrasando um pouco para a escola, porque ele demorou a levantar. Apressaram-se ao máximo, mas não foi o suficiente. Ainda assim, deixaram-na entrar.

Entrou em completo silêncio para não atrapalhar nem um pouco. Ao sentar em seu lugar, abaixou a cabeça e acabou pegando no sono, até o final da segunda aula. Por incrível que pareça, ninguém percebeu. Nem mesmo Annie. Mandy acordou com o sinal da terceira aula e aí sim Annie viu. Mandou um bilhete perguntando o que aconteceu, e Mandy respondeu:

Bebi com meu pai ontem e não dormi à noite, vim direto para a escola. Preciso conversar algo sério com você depois, tudo bem?

Annie apenas olhou para ela e assentiu com ar preocupado. Assistiram à aula e se encontraram no pátio no intervalo. A impressão que se dava era que tudo se passava pela mente de Annie. Foi o que ela deixou claro quando Mandy se aproximou para conversarem.

- Você está gostando do meu namorado, é isso? – perguntou, num ar convencido e um pouco rude.
- O quê? Não, Annie! Por favor, não é nada disso! – Mandy chegou a rir.
- O que é então? Você está me matando.
- Vou dizer logo. Annie, eu vou me mudar para o Canadá na próxima quarta-feira. Não tenho escolha e antes que diga qualquer coisa, a culpa não é minha.

Os olhos de Annie encheram-se imediatamente e ela negou algumas vezes com a cabeça, levantando-se e saindo dali, como se, realmente, Mandy tivesse alguma culpa. Ela ficou ali, segurando, como sempre, as lágrimas amargas, por não poder opinar na decisão do pai, até o sinal tocar e ela ter de voltar para sala.

Annie não olhou mais para o rosto de Mandy naquele dia. No sábado de manhã, ela decidiu ir até a casa da amiga, já que Annie negava até os telefonemas dela.

- O que é que você quer, Amanda? – ninguém nunca a chamava daquele jeito, ela realmente detestava ser chamada de Amanda.
- Convencer você de que eu não tenho culpa nenhuma, caramba. Por favor, Annie. Meu pai precisa fazer isso. Por mim eu não saía de Nova York por nada, você sabe disso. Você pode abrir a droga dessa porta e me ouvir?
- Eu estou te ouvindo daqui, Amanda, e prefiro que você vá na quarta sem falar mais comigo, de hoje em diante.
- Ah, ótimo. Tenho mais um motivo pra aderir à vontade do meu pai. Tchau, Annie.

Annie não respondeu. Mandy, como na quarta-feira anterior, voltou para casa em passos rápidos, desviando das poças de água dispostas simetricamente pela rua. Quando chegou em casa, viu seu pai fechando com fita uma caixa que estava sobre a mesa da sala de jantar. Engoliu seco e perguntou sem pensar se ele precisava de ajuda.

- Quero que você faça isso em seu quarto também. Tudo bem?
- Sim. Tudo bem. Eu vou subir. Qualquer coisa, pode me chamar. – forçou um sorriso enquanto ia em direção à escada.

Enquanto tirava todas as coisas de seu armário e colocava em cima da cama e da mesa do computador, o celular tocou. No visor estava escrito “mãe” e por isso Mandy revirou os olhos, mas na verdade era sua meia-irmã, Alice, de cinco anos.

- Mandy, é a Alice, não a mamãe. – avisou, de cara, porque sabia que talvez a irmã quisesse desligar. É, Alice a compreendia como ninguém, apesar da pouca idade.
- Olá, querida. Tudo bom? – sorriu, um tanto aliviada.
- Sim. Mandy, eu estou com saudades, quando você vai vir me ver?
- Lice... Eu... Agora não sei mais. – mordeu os lábios e deixou, involuntariamente, que seus olhos se enchessem.

A pequena suspirou, mas não perguntou mais nada. Conversaram mais algumas bobagens, Alice chorou e Mandy prometeu que tudo ficaria bem. Um pouco antes de desligar, Mandy avistou, dentro do armário, num canto qualquer, algo que talvez ela nem lembrasse que possuía. Ao desligar, foi conferir. Era um gravador, dos antigos, de fita ainda. Passou os dedos para tirar a poeira e em seguida limpou-os na calça. Sentou-se na beirada da cama com ele em mãos e abriu um leve sorriso, pensando que se divertiria com seu novo amigo.

Amanda Ryan, dia 28 de outubro, ainda em Nova York. Ok. Eu gosto de Nova York. É legal. É prostituída, violenta e polêmica, mas não é por isso que eu gosto daqui. Gosto porque é minha Nova York. Onde eu nasci e cresci. Pensar que quarta-feira isso tudo vai se acabar me dá um certo medo. Medo de ficar sozinha, sabe? Medo de não conseguir fazer amigos. Na verdade isso é uma certeza, que eu não vou conseguir fazer amigos. Sou amiga de Annie, Jeff e Paul desde pequena e nós não deixamos de ser amigos. Não tive nunca a preocupação de procurar por outras pessoas porque esse grupo se manteve estável. Na verdade, só tinha sobrado Annie, ultimamente. Jeff e Paul cresceram mais rápido que nós e estavam adultos e ocupados demais para duas garotinhas. Agora se ocupavam com mulheres, o time da escola, carros e essas coisas. Eu não gosto das outras pessoas. As garotas são umas vadias e os garotos só pensam merdas. Talvez Jeff e Paul tenha se contaminado com eles, mas isso não vem mais ao caso. Não gosto das pessoas e do que elas fazem. Sou meio esquisita. Só bebo quando estou com meu pai, mas não fumo, e nem uso drogas. Namorei um cara há uns dois anos. Eu gostava bastante dele, mas ele era um dos garotos que só pensam merdas. Passamos algumas noites juntos e depois ele disse que estava cansado, é. Ao mesmo tempo eu penso que talvez seja bom sair daqui. Eu não sei. Estou confusa. O que eu queria era voltar a falar com Annie antes de ir. É...

Ela desligou. Porque não tinha mais o que falar e porque seu pai mexeu na maçaneta da porta e ela ficaria constrangida se ele entrasse e a visse falando sozinha. Quando entrou, ela agiu normalmente, sorrindo. Estava quase tudo guardado. Sua vida inteira em caixas de papelão.

- Preciso resolver umas últimas coisas no escritório. Você fica aqui? - o pai perguntou, ainda que soubesse a resposta.
- Claro. Pai, eu acho que vou sair com a minha irmã amanhã. Sabe Deus quando vou vê-la de novo. E... Ela precisa de mim.
- Sim. Tudo bem. - sorriu - Então, até mais tarde.

Mandy assentiu, sorrindo, enquanto levantava e fechava outra caixa. Quando ele saiu, ela respirou fundo. É, era o fim. Jogou-se na cama ao terminar de lacrar a última caixa, bufando um ar de frustração e tristeza. Na verdade, era mais misto e indescritível que só isso. Seu celular tocou. Teve vontade de lançá-lo contra a parede ao ver a foto na tela. Seu ex-namorado. Por que isso, agora?

- Annie disse que você vai embora. - ele disse, mal dando tempo para ela dizer alô - É verdade mesmo?
- Sim. - assentiu - Mas você não tem nada a ver com isso. Por que quer saber?
- Poxa, Mandy... Você fez parte da minha vida. De uma fase boa da minha vida. E embora eu tenha feito o que fiz com você... Eu gosto de você. E do que vivemos juntos. Vai ser estranho não te ver mais.
- Eu não ligo, Half.
- Tudo bem, Mandy, você tem razão, completamente.

Ele não era um vadio, como ela mesma dizia às vezes. Ele não tinha terminado com ela por já estar satisfeito de prazer. Terminou com motivos reais, embora só ele soubesse. Mas, ainda assim, ela tinha razão em se sentir frustrada em relação a ele.

- Eu preciso de um favor seu. - Mandy pediu, hesitando um pouco.
- Diz.
- Convença Annie a ir até o aeroporto na quarta. Eu preciso dela. Preciso dizer adeus.
- Está bem. Agora tenho de desligar. Hm, boa viagem. E mande notícias, Mandy.
- Mando.

sábado, 3 de julho de 2010

Capítulo I

Mandy desviava das poças em passos rápidos, tentando chegar até sua casa. Não mantinha o olhar reto, apenas no chão, e as mãos permaneciam nos bolsos de sua jaqueta. Respirava como se estivesse cansada de andar, mas na verdade aquilo significava que ela estava perdida. Não que ela não conseguisse achar o caminho de casa, mas é que ela não sabia realmente o que fazer. Esse, o sentido de perdida.

Ela havia acabado de sair do escritório de seu pai, sua única família desde os cinco anos. E a conversa que eles tiveram não foi muito animadora. Na verdade, foi o que a deixou perdida. Ela estava indo para casa apenas para pensar em tudo que ele havia dito. Não era ruim, mas era estranho.

Sentiu duas ou mais gotas minúsculas de água molharem o topo de sua cabeça e olhou para cima, na intenção de ver se, de onde vieram essas viriam mais. Sim, mais algumas tocaram seu rosto. Ela procurou andar ainda mais rápido. Arregaçou a manga da jaqueta para olhar seu relógio. O tempo parecia ter parado, naquele dia. Ela suspirou e esticou novamente a manga, fazendo com que cobrisse seus dedos. Ela dizia que só sabia andar assim.

A chuva começou a aumentar, mas deu tempo de ela subir os quatro degraus para a varanda de sua casa e abrir sua mochila para procurar suas chaves. Agora sim sua respiração era de quem estava cansada de andar. Ao entrar, pouco se preocupou em trancar outra vez a porta, jogou a mochila no meio do caminho e abriu o zíper da jaqueta enquanto se rastejava até o sofá, onde se jogou, sem querer pensar em mais nada. Fechou os olhos.

Imediatamente, o telefone tocou. Ela temeu que fosse Annie, sua melhor amiga. Mandy engoliu seco e levantou-se num pulo para atender. Era ela. Determinou-se a, em hipótese alguma, comentar sobre qualquer coisa a respeito da conversa que havia tido com seu pai. Comentaram sobre garotos, sobre as tarefas da escola, sobre o clima, as séries da TV. Então Mandy se traiu.

- O que você acha do Canadá? – perguntou, dando-se conta, imediatamente, do que havia dito, revirando os olhos, buscando um meio de desfazer a pergunta. Tarde demais.
- Frio. – Annie respondeu como se fosse nesse sentido que Mandy tivesse perguntado. Como se fosse mais óbvio do que realmente é.
- É, tem razão.
- Por quê?
- Nada. Estava vendo algo sobre isso na televisão. – ela mentiu. Nisso ela era boa. Logo mudou de assunto.

Continuaram conversando por mais algum tempo. Depois que desligaram, Mandy foi tomar banho. Um banho quente em sua banheira era tudo que ela precisava. Subiu as escadas com todo o cansaço do dia, deixando um pouco em cada degrau e tentou chegar o mais rápido possível dentro de seu banheiro, dando passos incrivelmente largos. Enquanto a banheira enchia, ela prendia os cabelos num coque alto, tirava a maquiagem e preparava a roupa que colocaria depois. Era quinta-feira, dia em que ela saía para jantar com seu pai.

Entrou quase completamente na banheira, tomando o cuidado habitual para não molhar os cabelos, já que havia lavado no dia anterior. Fechou os olhos e tentava não dormir, porque não havia sido nada agradável quando isso aconteceu pela última vez. Quando sentiu seus dedos enrugarem, esticou o braço para pegar sua toalha na cadeira que estava ao lado.

Vestiu seu vestido azul marinho, com um casaco leve de lã cinza, meia-calça preta e sapatilhas também cinza. Prendeu algumas mechas da frente de seu cabelo, para trás, formando uma trança, e deixando o resto do cabelo solto. Passou uma maquiagem leve e desceu. Seu pai havia acabado de chegar e estava organizando suas coisas. Olhou para ela, enquanto descia as escadas.

- Você não se cansa de ser linda assim? – ele perguntou, realmente admirando a beleza de Mandy.

Suas bochechas esquentaram e ela terminou de descer. Ele a abraçou e continuou olhando para ela. Ela era realmente uma garota maravilhosa. Tinha a pele bem clara e os cabelos eram loiros, mas puxavam para o castanho, iam até a metade das costas – ela dizia que já havia passado o tempo de cortá-los –, era bem magra e tudo nela era bem leve. Os olhos, o sorriso, as mãos, o jeito de falar, de andar. Parecia uma princesa.

Tinha dinheiro. Muito, para ser clara. Podia ter o que quisesse e quanto quisesse e, de fato, tinha. Mas, ao contrário do que mais se via em Nova York, ela não se aproveitava disso, nem era como as outras garotas. Não fazia as coisas erradas só por prazer, por interesse ou popularidade. Não gostava muito do que os outros faziam. Mas, em tudo que fazia, Mandy sentia um vazio. Como se nada pudesse preenchê-la.

Ficou na sala esperando seu pai enquanto ele tomava banho e se aprontava para saírem. Decidiu usar o notebook enquanto esperava. Pesquisou sobre o Canadá na Internet, sem muito ânimo, era só para saber o que encontraria por lá. Leu artigos sobre culinária, turismo, educação e voltou à página inicial. Nada parecia animá-la tanto.